Administração municipal estuda redução da abrangência do programa de inspeção veicular
Gilberto Natalini*
O prefeito de São Paulo parece ter sido convencido por marqueteiros políticos, ainda no calor da disputa eleitoral, a fazer um gesto para a classe média e assim acabar com a taxa de inspeção veicular. Foi um erro. Agora, não vê outra saída a não ser cumprir a palavra. É injusto o fim da cobrança dos proprietários de veículos e a decisão de socializá-la para o conjunto da população, usando dinheiro do orçamento municipal. Essa política faz com que pessoas de baixa renda, que não possuem e talvez jamais venham a possuir veículos automotores, também contribuam com os seus impostos para a Prefeitura pagar por um serviço cujo custo, por lógica, deve ser de responsabilidade do proprietário, o único responsável pela regulagem adequada do seu carro ou de sua motocicleta, o único responsável pela emissão de poluentes de seu próprio veículo. Cabe ressaltar que a poluição compromete a qualidade do ar e a saúde da população da nossa cidade.
A decisão do prefeito de São Paulo é regressiva. Tira dos pobres para dar aos ricos. É a decisão de um verdadeiro Robin Hood às avessas.
O segundo erro do senhor prefeito é consequência do primeiro. Já que a Prefeitura quer pagar com o dinheiro do povo a inspeção, ele parece ter decidido reduzir a abrangência do programa, para diminuir o impacto no orçamento da cidade. Para justificar sua posição, alegou que a inspeção não melhora o ar da cidade, sem levar em conta dados oficiais do Detran, segundo os quais entraram em circulação na cidade, de 2008 a 2012, durante o período de vigência da inspeção, mais de 1 milhão e 300 mil veículos. Ou seja, a inspeção foi fator importante para o ar de São Paulo não se deteriorar ainda mais.
Como argumento, o senhor prefeito lançou mão de outro dado falacioso. O de que a inspeção provoca uma perda de receita de IPVA, pois os veículos da cidade, para fugir dos custos do serviço, estariam sendo registrados em municípios vizinhos. Não há estudos no Detran que atestem o fenômeno. O aumento da frota nas cidades da Região Metropolitana parece guardar relação direta com o aumento do poder aquisitivo em áreas periféricas, cujos moradores passaram a ter condições de comprar veículos.
Falo agora como médico, ainda em atividade, há mais de 30 anos cuidando da saúde da população paulistana. A qualidade do ar pode salvar vidas, da mesma forma que o ar contaminado pode tirar vidas.
Passo a fazer referência a documento elaborado em 2011 pelo médico patologista Paulo Saldiva, entre outros especialistas, do Laboratório de Poluição Atmosférica da Faculdade de Medicina, da Universidade de São Paulo (USP). Eles analisaram as inspeções em veículos a diesel realizadas naquele ano. O estudo levou em conta informações de Relatório de Qualidade do Ar da Cetesb, e dados sobre internações hospitalares por causas respiratórias e cardiovasculares em crianças de zero a 4 anos e em adultos com mais de 40 anos. Os números foram confrontados com padrões recomendados pela Organização Mundial da Saúde.
Os especialistas do Laboratório de Poluição Atmosférica da USP trabalharam em cima do fato de que 75% da frota a diesel foi inspecionada em 2011. Com a regulagem adequada dos veículos aprovados na inspeção houve redução de 28% na emissão de material particulado fino, gás muito danoso à saúde humana, exalado principalmente por caminhões e ônibus.
A conclusão dos especialistas é importantíssima. Os 75% da frota a diesel que foram aprovados na inspeção salvaram as vidas de 380 pessoas na cidade de São Paulo no ano de 2011. Mais: como a cidade de São Paulo pertence à mesma bacia aérea que os outros municípios que formam a Região Metropolitana, a melhoria nas condições do ar na capital salvou 584 vidas no conjunto de cidades da Grande São Paulo em 2011.
É importante frisar que esses números levam em conta apenas a redução das emissões de material particulado de veículos a diesel. Os especialistas da USP ainda fizeram uma projeção sobre o número de vidas que seriam salvas se toda a frota a diesel da Região Metropolitana tivesse sido inspecionada em 2011. Concluíram que 1.011 mortes teriam sido evitadas, apenas na cidade de São Paulo. Em todos os 39 municípios da Região Metropolitana seriam 1.560 vidas salvas.
Os especialistas do Laboratório de Poluição Atmosférica da USP também calcularam a economia com internações hospitalares e mortes evitadas pelas melhores condições do ar na cidade de São Paulo, obtida com a regulagem adequada de 75% dos veículos a diesel que foram aprovados pela inspeção em 2011. Estamos falando em 130 mil veículos. A economia em gastos de saúde foi superior a R$ 100 milhões. Caso a inspeção tivesse sido feita em toda a frota a diesel da Região Metropolitana, a economia em termos de gastos de saúde alcançaria R$ 425 milhões no conjunto de municípios da Grande São Paulo.
Considerando o número de pessoas salvas e o custo de 130 mil inspeções de veículos a diesel em 2011, cada vida salva custou R$ 13 mil. Valeu a pena? Quanto vale uma vida humana?
Os especialistas da USP concluíram o estudo com a defesa da ampliação dos serviços de inspeção veicular, considerando os impactos positivos na saúde da população.
Cabe esclarecer aos senhores que não são apenas médicos que reconhecem a importância da inspeção veicular. A Associação Brasileira de Engenharia Automotiva, com sede em São Paulo, na pessoa do seu presidente, Antonio Carlos Botelho Megale, corrobora tecnicamente a validade do programa de inspeção, aponta os seus benefícios e defende a sua ampliação para outras cidades de São Paulo e do país.
Voltemos ao afrouxamento da inspeção veicular preconizado pelo senhor prefeito de São Paulo. Para diminuir os custos, ele manifesta o desejo de reduzir a periodicidade da verificação técnica pela metade, ou seja, quer passar a inspeção de anual para bianual. Essa decisão afronta resolução do Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente), que estabeleceu em 2009 que a inspeção veicular tem de ser anual.
Estudos indicam que uma inspeção bianual provocará uma perda de 50% na efetividade da verificação anual. Em outras palavras, após um ano os motores se desregulam e poluem mais. As condições do ar de São Paulo vão se deteriorar.
Outro erro anunciado pelo senhor prefeito é o de manter fora da inspeção veículos mais novos, de um a cinco anos de fabricação. Estudos apontam que veículos leves, isto é, automóveis e motocicletas, têm redução considerável nas emissões de monóxido de carbono e de hidrocarbonetos se estiverem bem regulados.
A redução nas emissões e, portanto, o benefício ambiental dos carros devidamente regulados que têm de um a cinco anos de fabricação, é de 7,6%. Já no caso das motocicletas, o benefício ambiental nos modelos de um a três anos de fabricação alcança 10,5%. Com isso, fica clara a importância da inspeção em veículos mais novos.
Estatísticas indicam que automóveis de um a cinco anos de idade têm de 2 a 15% de não aprovação nas inspeções. Já as motocicletas da mesma faixa de fabricação registram de 6 a 30% de reprovação. Dos veículos a diesel com um a cinco anos de idade, por sua vez, de 30 a 34% são reprovados nas inspeções. São números representativos. Como abrir mão da inspeção dos veículos mais novos?
Em condições normais, veículos deveriam ser revisados a cada 10 mil quilômetros ou um ano de uso. Não o são. No total, as reduções nas emissões de monóxido de carbono e de hidrocarbonetos obtidas com a obrigatoriedade da inspeção anual equivalem a uma retirada de mais de 2 milhões de veículos das ruas da cidade. É por isso que as condições do ar em São Paulo se mantêm estabilizadas, apesar do incremento extraordinário na frota de veículos.
Não é responsável afrouxar o programa de inspeção. Ao contrário, a verificação técnica tem de se tornar mais rígida, conforme padrões internacionais de excelência. Mais de 50 países já fazem inspeção veicular. O prefeito parece andar na contramão do mundo moderno.
Se já não houvesse tantos motivos para nos preocuparmos com a poluição atmosférica, apresento ainda mais um: a decisão do Governo Federal, sob o comando do mesmo partido que o prefeito de São Paulo, de atrasar em três anos a obrigatoriedade de um diesel mais limpo no país, o que certamente tornar nosso ar mais sujo. Infelizmente, isso não foi priorizado pelo PT.
Finalizo com outra referência aos trabalhos do Laboratório de Poluição Atmosférica da USP. Trata-se de um estudo realizado em 2007, ainda antes da obrigatoriedade da inspeção veicular na cidade de São Paulo. O levantamento apontou a ocorrência de 5 mil mortes anuais na Região Metropolitana apenas naquele ano, todas decorrentes de doenças provocadas pela contaminação do ar. O número de vítimas fatais do ar de São Paulo naquele ano de 2007 é superior ao de soldados norte-americanos que perderam a vida em toda a guerra do Iraque.
Uma visão de curto prazo, demagógica e populista pode prejudicar todo o esforço por uma gestão ambiental moderna, na maior cidade brasileira. Por isso anuncio aos senhores que estamos estudando juridicamente a viabilidade de barrar na Justiça a flexibilização da inspeção veicular.
Gilberto Natalini, 60 anos, é médico e vereador (PV-SP)