Gilberto Natalini SP

Mudam os tempos, não os costumes. Na era do Antropoceno, nos países do Sul Global, tem sido comum encontrar uma espécie de “armadilha” relativamente simples de entender: para quitar dívidas (cada vez mais insustentáveis) contraídas junto às nações mais ricas do Norte Global e às poderosas instituições financeiras (forças que majoritariamente criaram a atual crise ambiental e climática), países pobres e vulneráveis, dependentes e acuados, continuam investindo em combustíveis fósseis (petróleo, carvão e gás) para gerar renda e assim se livrar dessas pendências.

Ocorre que a persistência dessas dívidas, “base de uma nova forma de colonialismo”, nos dizeres do coletivo Debt Justice, cria para as nações pobres – as que mais sofrem com as mudanças climáticas – inúmeras dificuldades para descarbonizar a economia em larga escala, notadamente a partir do uso de energias sustentáveis, crucial para evitar mais perdas ambientais (assunto que merece atenção urgente) ao longo desse século, tanto quanto cria obstáculos para se construir um padrão de desenvolvimento mais inclusivo. Mina, portanto, a viabilidade dessas economias.

Mas, claro, não é só isso. No mundo de hoje, no jogo de interesses do capitalismo contemporâneo, há mais ações engendradas pelo lado rico do mundo que impõem pesado fardo às nações pobres. Seja por conta do deslocamento de atividades poluidoras às regiões mais carentes, e em muitos casos transformando para sempre essas regiões, seja pelo excesso de lixo eletrônico que Europa e América do Norte, em especial, fazem chegar com facilidade ao continente africano, por exemplo, notadamente para Nigéria e Gana. Na Nigéria, estimativas dão conta de que, a cada ano, 18 mil toneladas de lixo eletrônico (20% vêm de portos da Alemanha e mais de 15% do Reino Unido) ali desembarcam. China e Estados Unidos completam a lista de países poluidores. Já em Acra, capital dos ganenses, o conhecido lixão é chamado de “cemitério dos eletrônicos”, talvez um dos locais mais poluído do planeta.

Em última análise, a questão do financiamento climático internacional, agora todos nós sabemos, tem se dado em forma de empréstimos (mais de 70% dos recursos oferecidos às nações pobres), e não de doações. Dos 100 bilhões de dólares por ano prometidos a partir de 2020 para os países mais pobres e para regiões atingidas por desastres climáticos, somente 83 bilhões, até agora, tiveram destino certo, segundo a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, OCDE.

De resto, olhando para o futuro, esforços levantados para enfrentar as ameaças climáticas, “a urgência cruel do agora”, no uso dessa expressão empregada por Martin Luther King, ainda que proferida sobre justiça social há cinco décadas, continuam seguindo a mesma lógica de sempre. No todo, embora os investimentos globais na transição para energia limpa tenham atingido pela primeira vez cifras acima de 1 trilhão de dólares (31% maior em relação a 2021), em 2022, isso é quase o mesmo valor investido na produção de combustíveis fósseis, de acordo com análise da BloombergNEF.

Seja como for, isso traduz o velho modelão conhecido que alimenta riscos catastróficos do futuro à medida que mais ameaças surgem, notadamente a partir do aumento das emissões de gases de efeito estufa. Sendo assim, é válido dizer que, para sustentar o influente propósito civilizatório que procura fazer do crescimento econômico a solução do mundo, a relação direta entre economia de produção (para muitos, a civilização industrial em si) e recursos da natureza, longe de se buscar o mal menor, nunca foi tão danosa (quer ao planeta, com a transformação de ecossistemas, ou mesmo ao sistema-vida) como tem sido agora.

Em definitivo, tendo em vista que limites naturais nunca foram tão banalizados como agora, a verdade é que nos aproximamos de danos ecológicos irreversíveis. Sobram exemplos. Até hoje, como espécie dominante, não hesitamos em destruir de todas as formas possíveis o habitat natural, acelerando de vez o desaparecimento de espécies.

Sendo rigoroso na análise, já passou mais de meio século que criamos tão abrangente crise de redução de biodiversidade. Agora, superar essa tendência de destruição do planeta (a chamada é forte, mas, todavia, é essa mesma) se consolida como o grande desafio ecológico diante de todos nós.

Ponto decisivo, muitos convergem para a necessidade de soar o alarme. E tudo indica que devemos começar repensando nosso jeito antropocêntrico (quer dizer, o impacto ecológico de nosso influente modelo de crescimento). Assim como precisamos renunciar à sedução que a lógica da economia, vale dizer, mais negócios e mais crescimento para mais produção e consumo, sonho da abundância material, exerce em nossa sociedade humana. À luz de fortes evidências, é dado perceber que não estamos diante de um capitalismo qualquer, mergulhados num profundo colapso decorrente de perturbações do Antropoceno, sempre em escala massiva, sempre seduzido por novas tecnologias, sempre em busca de crescimento, sinônimo de progresso. Com ou sem tecnologia (fator de produção principal que ajuda a definir nossa época), a verdade, dita sem cerimônias, é que fomos atropelados por um capitalismo de colapso, típica “força” produtora de perturbações planetárias que nos aproxima do ecocídio.

Nessa direção, ao criticar a visão de mundo utilitária, John Bellamy Foster dirá com outras palavras que “no Antropoceno, o capitalismo está criando fissuras antropogênicas nas espécies, nos ecossistemas e na atmosfera, gerando uma crise socioecológica”. David Attenborough, nessa mesma perspectiva, não hesita em levantar uma sentença emblemática: “o mundo natural está desaparecendo”.

De tal forma, é com esse capitalismo agressivo e sua gana pelo progresso ilimitado que se constrói o que o senso comum chama de modelo de civilização. Nesse curso da história, bem se vê que os fundamentos ecológicos (o ar, a água, o solo, os oceanos, os recursos pesqueiros, e assim por diante) se encontram num nível de degradação jamais antes imaginado. Bases naturais (ecossistemas do globo) são constantemente deterioradas. O mesmo acontece com a pele da biosfera, teia da vida na Terra.

É difícil prever o que vai acontecer no futuro próximo diante da visão antropocêntrica que coloca o econômico acima do ecológico; a rentabilidade acima do humanitário. Com efeito, a única coisa que sabemos, olhos postos na pegada ecológica das sociedades e na realidade de crise ecológica com a qual temos dificuldade de lançá-la em outra direção, é que o projeto civilizacional está numa encruzilhada.
No ponto em que a sociedade humana se encontra, reverter essa tendência de reprodução da dinâmica capitalista com sua ideia de acumulação (sociedade do rendimento, modernidade industrial, modelo consumista) que subtrai o capital (recursos da natureza, água, fontes de energia, matérias-primas em geral) na qual a própria economia se apoia, é, decerto, o tema principal a ser colocado na verdadeira agenda de desenvolvimento que somente terá viabilidade, cada um sabe, se conseguirmos construir uma cultura ecológica, pensando exclusivamente no sistema Terra.

(*) GILBERTO NATALINI é médico-cirurgião, vereador por cinco mandatos na Câmara Municipal de São Paulo. Foi secretário municipal do Verde e do Meio Ambiente (2017) e candidato a governador do Estado de São Paulo pelo Partido Verde, em 2014.
Atualmente, ocupa o cargo de secretario do Clima da cidade de São Paulo.

(**) MARCUS EDUARDO DE OLIVEIRA é economista, professor e ativista ambiental. Mestre em Integração da América Latina pela Universidade de São Paulo (2005). É autor de Civilização em Desajuste com os Limites Planetários (CRV, 2018), entre outros.