Em nome da Academia Brasileira de Neurologia, a qual é uma associação sem fins lucrativos, de duração indeterminada, congregadora e representativa dos que exercem e/ou cultivam a Neurologia e ciências afins no Brasil, e que dirige e orienta o Departamento de Neurologia da Associação Médica Brasileira, e representa no país a WFN – World Federation of Neurlogy, tomamos a liberdade de lhes encaminhar esta
mensagem sobre o processo de liberação do fármaco Aducanumab para tratamento da doença de Alzheimer (DA).
O Departamento de Neurologia Cognitiva e do Envelhecimento da Academia Brasileira de Neurologia emitiu um comunicado em 08 de junho de 2021 ressaltando que “a aprovação do Aducanumab, anticorpo monoclonal contra uma das alterações patológicas relacionadas à DA (peptídeo beta-amiloide), pelo Food and Drug Administration (FDA), é uma importante notícia para a comunidade científica e para as pessoas e famílias que convivem com essa enfermidade. Recebemos a notícia com otimismo, por tratar-se do primeiro medicamento aprovado nesta área desde 2003 e por sua ação específica no processo fisiopatológico da doença, removendo as placas de peptídeo beta-amiloide cerebral nas fases iniciais da doença.”
Este fármaco tem seu emprego embasado em conhecimento da fisiopatologia da DA e seguramente está no caminho correto do processo que esperamos não seja muito longo e que nos levará ao tratamento mais eficaz e cura da doença. A demonstração de que com o emprego do Aducanumab há redução dos depósitos de peptídeo beta-amiloide presentes no parênquima cerebral já havia sido realizada em estudo publicado por Sevigny et al. no periódico Nature, em 2016, e não fazia parte dos desfechos primários ou secundários dos dois ensaios clínicos (EMERGE e ENGAGE), que tinham exatamente como objetivo verificar se a redução destes depósitos proteicos promoveria melhora cognitiva. Além disto, outros estudos também não haviam encontrado associação entre a remoção deste peptídeo e melhora clínica. Entretanto, a aprovação do Aducanumab para emprego no tratamento da DA tem motivado muita controvérsia, em todo o mundo, inclusive nos Estados Unidos. Temos confiança de que a Anvisa tem total capacidade de decidir esta complexa questão e que deve estar buscando assessoria apropriada para a tomada de decisão correta. Mas como entendemos que é tema controvertido, sentimo-nos responsáveis,
tanto como médicos especializados nos cuidados de pacientes com declínio cognitivo, quanto como membros de associações médicas relacionadas com estas áreas de atuação, a enviar nossa posição que pode contribuir para a decisão a ser tomada:
1. Em primeiro lugar, a maioria dos pacientes incluídos nos ensaios clínicos para avaliação deste fármaco estavam em fase muito inicial das manifestações clínicas da doença de Alzheimer (DA), em que há comprometimento cognitivo leve (do inglês, mild cognitive impairment – MCI) e ainda não há demência (ou declínio funcional associado e causado pelo declínio cognitivo). Entre os 3.285 participantes dos dois estudos (EMERGE e ENGAGE), mais de 80% foram classificados como CDR 0,5, o que corresponde a comprometimento cognitivo leve, os demais apresentavam demência de intensidade leve não tendo sido incluídos pacientes com demência de intensidade moderada e grave. (Dados extraídos de Haeberlein et al. EMERGE and ENGAGE Topline Results: Two Phase 3 Studies to Evaluate Aducanumab in Patients With Early Alzheimer’s Disease. Available at https://investors.biogen.com/static-files/8e58afa4- ba37-4250-9a78-2ecfb63b1dcb, obtido em 11 de janeiro de 2022). Cumpre sublinhar que os resultados de ambos estudos (EMERGE e ENGAGE) ainda não foram publicados em periódicos científicos indexados, após processo de revisão crítica por pares;
2. Logo, não há indicação para o tratamento da demência de intensidade moderada ou grave da DA e a indicação para tratamento da demência de intensidade leve é baseada em amostra bastante reduzida;
3. De acordo com os procedimentos tradicionais da FDA há a necessidade de que dois estudos demonstrem a eficácia de um fármaco para que ele possa ser avaliado para a aprovação. No caso do Aducanumab, apenas um dos estudos (EMERGE) demonstrou eficácia estatisticamente significativa com doses altas; o outro estudo (ENGAGE) não constatou diferenças. Este é um dos principais motivos de crítica quanto à liberação do fármaco. Logicamente, o resultado negativo constatado no estudo ENGAGE tem tanta probabilidade de ser verdadeiro quanto o resultado positivo do estudo EMERGE. A sequência que consideramos lógica seria a realização de outro estudo, com a possível inclusão de métodos que se tornaram disponíveis nos últimos anos como marcadores de depósito de proteína fosfo-tau, por exemplo. É importante ressaltar que o resultado favorável observado com doses altas no estudo EMERGE somente foi constatado em análise ulterior, quando o estudo já havia sido interrompido pelos investigadores quando tinha sido considerado que haviam sido preenchidos critérios de futilidade;
4. Efeitos colaterais foram frequentes e dose-dependentes. Anormalidades claramente associadas com o emprego do fármaco (ARIA ou amyloid-related imaging abnormalities) seja sob forma de micro-hemorragias cerebrais ou edema cerebral ocorreram em 41,2% dos pacientes que receberam doses altas no estudo EMERGE, em alguns casos representando eventos adversos graves. Em sua maioria os efeitos foram autolimitados e caracterizaram-se por tonturas, confusão mental, cefaleia, porém, necessitando de acompanhamento próximo e avaliação especializada. Devido às taxas elevadas de efeitos colaterais há necessidade de avaliações clínicas frequentes e de exames de ressonância magnética sequenciais, mesmo se não houver sintomas. Em relação à ressonância magnética, a sugestão é de que os exames sejam realizados até um ano previamente ao início do tratamento e antes da quinta, sétima e décima segunda infusões mensais; e para maior cautela pode ser realizada também após 3 doses de 10 mg/kg. Adicionalmente, a ressonância deve ser repetida sempre que houver piora clínica, pela possibilidade de eventos ARIA. Isso deverá acarretar uma sobrecarga enorme aos exames de imagem já realizados no SUS. Os estudos demonstraram que polimorfismos do gene da Apolipoproteína E, em especial a presença do alelo e4 em homozigose, aumentam muito o risco de ARIA;
5. Para indicação do tratamento há necessidade de diagnóstico clínico, exames laboratoriais e de neuroimagem para excluir outras doenças e confirmação do diagnóstico de DA mediante exame de biomarcadores no líquido cefalorraquidiano ou neuroimagem especializada (tomografia por emissão de pósitrons) com positividade para o depósito amiloide. Estes exames necessários para a confirmação do diagnóstico de DA não estão facilmente disponíveis para a população e são procedimentos de alto custo;
6. A medicação tem custo muito elevado, é administrada por infusão a cada 4 semanas; os exames de neuroimagem a ser realizados periodicamente, também têm custo elevado e não são facilmente disponíveis;
7. Como a DA é muito frequente (e o MCI devido à DA também é muito frequente) o número de pacientes candidatos a receber tratamento, quando este vier a existir, será muito grande;
8. É importante frisar que o Aducanumab não cura a DA, não restaura a função cognitiva, nem bloqueia a sua progressão, em nenhuma fase da doença;
9. Como justificado acima, a indicação do Aducanumab deverá se restringir a uma pequena parcela dos casos de DA que apresentem sintomas muito leves e a identificação dos casos elegíveis depende de qualificação profissional e instrumentação diagnóstica avançadas, pouco disponível fora de centros especializados;
10. Associações médicas de países de alta renda como o Canadá e os Estados Unidos da América, já manifestaram preocupação quanto ao enorme ônus que poderia cair sobre o sistema de saúde caso este medicamento venha a ser aprovado. Recentemente, a Agência de Saúde da União Europeia (EMA) posicionou-se contrariamente à sua aprovação;
11. Neste momento, em que no Brasil os pacientes com DA e seus familiares arcam com a maioria dos custos dos cuidados que a doença exige, fazendo com que familiares tenham que abandonar seus empregos para poder cuidar de pacientes com demência, que não têm onde ficar e não podem ser deixados sós, que não têm apoio terapêutico, não recebem orientação ou treino cognitivo por falta de recursos das entidades governamentais, não seria adequado desviar estes pouquíssimos recursos para permitir o emprego de um tratamento de alto custo e de valor incerto;
12. Nossa grande preocupação é com a possível judicialização para a obtenção deste fármaco, se seu uso for liberado para uso clínico sem restrições.
Estas são algumas razões que consideramos importantes para que a Anvisa se posicione contrariamente à liberação deste fármaco para uso clínico sem restrições. Por outro lado, entendemos que mais estudos são necessários e que este fármaco deva ser liberado para a realização de ensaios clínicos no país, que auxiliem o esforço internacional para tentar comprovar sua eficácia na DA. E que segundo a Política Vigente para a Regulamentação de Medicamentos no Brasil, “até que tais evidências sejam apresentadas e aceitas, esses produtos podem ser utilizados no País em ensaios clínicos e em programas de acesso expandido, situações nas quais o ônus permanece com as empresas
farmacêuticas, ao invés de ser transferido para o SUS.”
Disponível em:
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/anvisa/manual_politica_medicamentos.pdf, obtido em 11 de
janeiro de 2022.
Atenciosamente,
Dr. Carlos Roberto de Mello Rieder
Presidente
Diretoria Executiva ABN
Dr. Ricardo Nitrini
Diretor Científico
Diretoria Científica
Dra. Jerusa Smid
Coordenadora do DC
Departamento Científico de Neurologia Cognitiva e do Envelhecimento