CRISE ANTROPOCÊNTRICA
Pode-se dizer que a partir dos anos 1960 abrimos a mais grave crise do meio ambiente que agora, como mostrou recentemente David Wallace-Wells, deixa a Terra inabitável (The Uninhabitable Earth), a começar pela constatação de que a temperatura da superfície da Terra cresce em ritmo acelerado. E nisso tudo, mais um agravante: nossa interpretação equivocada de crescimento como desenvolvimento – típica visão do mundo ocidental -, levou-nos a apostar todas as fichas na racionalidade produtivista, pilar da modernidade.
De certa forma, sem rotulação, já há algum consenso de que, por conta disso, fomos doutrinados a entender o crescimento (tornar a economia maior aumentando as quantidades) como o sinal mais significativo de progresso e de desenvolvimento da vida social moderna, sem que se considere aí o principal efeito colateral: a crise global da natureza, inaugurada justamente pela relação conflituosa – antropocêntrica – que mantemos com os diferentes compartimentos da biosfera, da qual todos dependemos.
Daí em diante, longe de um ethos ambiental, não hesitamos em reafirmar a própria lógica da modernidade (sem acumulação não há progresso). Ou, como dizem Débora Danowski e Eduardo Viveiros de Castro, “fomos invadidos por uma raça disfarçada de humanos, e descobrimos que eles ganharam: nós somos eles.”
Quer dizer, em nosso imaginário, uma vez que somos facilmente seduzidos pelos encantos do consumo, seguimos guiados pelo predomínio da cultura do capital (obter lucro com tudo).
Aliás, nada mais pernicioso, em nível civilizacional, do que notar que a força do grande capital está por trás das principais adversidades ambientais, desde a morte de florestas à desertificação do solo; da poluição do ar, da água à queima de combustíveis fósseis; do aquecimento da atmosfera ao empobrecimento biológico.
Enfim, do que se convenciona chamar de degradação socioambiental, ou a incessante destruição do mundo físico.
Ponto delicado, diante de um sistema que exige crescimento continuado, sequer conseguimos esconder nossa principal dificuldade cotidiana: entender que uma Terra apenas não é mais suficiente para manter – da forma como queremos – o atual estilo de vida da humanidade, especialmente o mais insustentável estilo de vida comandado pelo Norte global, onde reside 25% da população do planeta que consome e produz 80% dos recursos naturais e do descarte do mundo.
Observando todo esse contexto, é fácil notar que estamos num tempo de grandes e doloridas feridas ambientais. Agimos como se tivéssemos à inteira disposição um planeta B, como se os recursos naturais fossem inesgotáveis.
Minimizamos a finitude dos recursos terrestres, como se o ecossistema global fosse capaz de suportar qualquer tipo de pressão.
Pela atualidade desse modelo econômico dominante, incapaz de apurar as conexões vitais e de respeitar a regeneração da natureza, vemos explodir a mais grave crise ecológica que impacta na segurança alimentar, no papel dos oceanos (o mais hábil regulador do sistema climático), provocando significativa ruptura da biosfera, que, sem meias palavras, marca nossa entrada na era do Antropoceno.
Dito isso, e diante do uso desenfreado de recursos da natureza para satisfazer vontades humanas de forma muito mais rápida do que os ecossistemas são capazes de regenerá-los, temos, agora, a possibilidade de desestabilizar o relativamente estável clima que tivemos no Holoceno.
Em termos objetivos, sendo a economia por definição comum uma espécie de eixo que articula a ideia de modernidade que conhecemos, o caos ecológico contemporâneo (em todos os níveis da natureza) é visto então como um produto direto e imediato desse sistema que esbarra nos limites ecológicos do planeta.
Assim sendo, se “a Terra produz vida”, como diz em tom coloquial Aílton Krenak, parece certo imaginar que, para salvaguardar a sustentabilidade planetária, “não podemos continuar reproduzindo essas estruturas podres, essas coisas que não têm sentido, continuar enfiando ferro no corpo da Terra”, como faz questão de concluir o brilhante líder indígena.
Nessa dita sociedade civilizada que mantém o humano no centro da cena, que restringe direitos democráticos e fomenta a exclusão social, nós, os modernos, precisamos abandonar nossa fé no crescimento sem fim que sacrifica a natureza e violenta os principais ecossistemas.
De toda sorte, se continuarmos agindo em favor da economia de acumulação, ignorando o básico, isto é, que nossas demandas conflitam com a oferta da natureza, maior será a dívida ecológica (sobrecarga dos Sistemas da Terra) contraída, seja no curto ou no longo prazo.
Daí a necessidade de defender a teia da vida, a tarefa mais essencial que a sociedade humana tem para realizar.
Para tanto, precisamos levantar um modelo econômico regenerativo e cessar essa barbárie ecológica presente, quer dizer, os sistemas da Terra abalados pelas crises simultâneas que já enfrentam perigosos pontos de inflexão.
Em nosso sentir, mediante outra economia, será possível garantir que a Terra permaneça habitável.
Com efeito, em nome do princípio da vida, e é isso o que mais importa, temos o dever de procurar superar o atual drama da civilização moderna.
Afinal de contas, essa crise ecológica em escala crescente quemarca profundas transformações na dinâmica das sociedades modernas (seja pela exaustação de recursos naturais, emissão de poluentes e mudanças climáticas) e que separa em lado opostos a destruição (principalmente de habitats e ecossistemas) e a preservação, já foi longe demais com o único (e determinante) objetivo existente no capitalismo contemporâneo: crescer, independentemente da finitude dos recursos.
Gilberto Natalini é médico-cirurgião, vereador por cinco mandatos na Câmara Municipal de São Paulo. Foi secretário municipal do Verde e do Meio Ambiente (2017) e candidato a governador do Estado de São Paulo pelo Partido Verde (PV) em 2014.
Marcus Eduardo de Oliveira é economista e ativista ambiental. Delegado do CORECON-SP por Osasco. Autor de “A civilização em risco” (Jaguatirica, 2024), entre outros. prof.marcuseduardo@bol.com.br