“Faço minhas as palavras do Dr. Drauzio Varella”- Gilberto Natalini
Ao comemorar o jubileu de ouro de sua formatura na Faculdade de Medicina da USP, no mês passado, o médico e colunista da Folha Drauzio Varella, 74, tomou de novo o palanque que assumira 50 anos antes como orador da turma.
Diante dos colegas da 50ª leva de formados da instituição, fez, no último dia 27, no teatro da faculdade, na zona oeste de São Paulo, um “resumo do resumo, coisa despretensiosa” sobre as transformações pelas quais a atividade passou desde aquela fala na cerimônia “ilegal” no Theatro Municipal, em 1967.
Naquele ano, a escolha do paraninfo, Luiz Hildebrando Pereira da Silva (1928-2014), demitido e expulso do país pela ditadura, levou a direção da faculdade a renegar o evento.
A criação do SUS (Sistema Único de Saúde) é a maior das revoluções deste meio século, disse à Folha, com ênfase: “O SUS é uma conquista definitiva. E um processo em andamento.”
No discurso, reproduzido aqui na íntegra, não minimiza os desafios que se antepõem: levar as novas tecnologias a toda a população “exigirá a reinvenção de um SUS que ainda nem conseguimos implantar com a abrangência necessária”.
Cinquenta anos atrás, no Theatro Municipal, fui o orador de nossa turma. Naquela ocasião, a escolha do professor Luiz Hildebrando como paraninfo foi considerada uma afronta pela direção da faculdade, que houve por bem não participar nem considerar oficial a cerimônia de formatura.
Eram tempos de ditadura. Ao escolher um professor que fazia parte de um grupo de docentes demitidos da universidade por razões puramente ideológicas, fazíamos um protesto veemente contra o autoritarismo militar e sua influência na academia.
No final do discurso, eu dizia com ardor juvenil: “A ninguém assiste o direito de exigir que nos transformemos em seres amorfos dentro da sociedade, reduzidos unicamente às funções de estudar e calar. Nosso silêncio poderá ser cômodo às classes dominantes, para a pátria, porém, representaria gravíssima traição”.
Meu pai depois diria ter tido certeza de que eu seria preso no final da cerimônia. Não era preocupação descabida, perdemos colegas de faculdade e amigos, desaparecidos nos porões da repressão. Ao contrário da maioria dos universitários de hoje, tínhamos sonhos grandiosos naquele tempo. Queríamos combater a miséria, acabar com a esquistossomose, Chagas, varíola, poliomielite, tuberculose e a desnutrição das crianças. Ao mesmo tempo, sonhávamos com a criação de universidades, metrópoles como Brasília, cidades novas pelo interior e em alfabetizar todos os brasileiros.
Não vamos esquecer, no entanto, que a memória é editora falaciosa, especialista em deletar experiências desagradáveis. Em matéria de costumes éramos bem mais atrasados do que os jovens de agora. Não tínhamos consciência do nosso machismo: em nossa turma de 100 alunos, havia apenas 15 mulheres, espécie de cidadãs de segunda classe na faculdade, no intervalo das aulas, recolhidas nas salas do departamento feminino.
Quando ouço falar da revolução sexual provocada pela pílula nos anos 1960, lamento ela ter acontecido onde eu não estava. O racismo da sociedade brasileira se refletia em nós. Não achávamos estranho haver em nossa turma os dois únicos estudantes de ascendência negra entre os 500 alunos da faculdade.
Colegas homossexuais eram alvo de chacotas grosseiras. Pertencíamos a uma elite estudantil que, ao receber o diploma da USP, julgava garantida a ascensão social. Apesar da gravidade dos problemas de saúde pública com os quais convivíamos no Hospital das Clínicas, a faculdade nos formava para ganharmos a vida como profissionais liberais. Pouquíssimos de nós imaginavam que um dia dependeríamos de empregos formais para sustentar a família.
Vamos lembrar que naqueles dias os pacientes sem condições financeiras para arcar com os custos médicos ficavam limitados ao antigo INPS. Os demais eram rotulados como indigentes, portanto dependentes da caridade pública.
Apesar da formação inadequada para as necessidades do país, nossa geração de médicos esteve à frente da maior revolução da história da medicina brasileira: a criação do Sistema Único de Saúde. Na Constituição de 1988, escrevemos “Saúde é um direito do cidadão e um dever do Estado”.
A despeito da demagogia do slogan que não garante os meios para cumprir tal dever e infantiliza o cidadão, ao retirar dele a responsabilidade de cuidar da própria saúde, foi de fato uma revolução. Nenhum país com mais de 100 milhões de habitantes ousou oferecer saúde gratuita a todos, sem exceção.
Enquanto frequentávamos a faculdade, havia 80 milhões de brasileiros. Na Copa do Mundo de 1970, já éramos “90 milhões em ação”. Hoje, somos 207 milhões. Apesar das desigualdades sociais revoltantes, dos desmandos predatórios de representantes políticos que elegemos e da parte de nossa elite financeira mancomunada com eles, levamos a medicina aos quatro cantos do Brasil, tarefa anteriormente impensável num país de dimensões continentais.
Muitos de meus colegas de turma e eu fomos criados sem pediatras, mesmo morando em São Paulo. Se não havia cuidados pediátricos para as crianças da capital, o que aconteceria no campo, onde viviam 80% dos brasileiros? Hoje, apesar do crescimento populacional explosivo, praticamente não há crianças sem algum acesso à assistência médica.
As cenas de bebês morrendo de desidratação, um atrás do outro, nos plantões do pronto socorro de pediatria, que tanto nos revoltavam, não acontecem mais. A mortalidade infantil caiu no país inteiro. Quando saímos da faculdade, a taxa de mortalidade infantil era de 73 para cada mil nascimentos. No ano passado, foi de 14.
Apesar de todas as deficiências, desorganização, uso político, corrupção e demais desmandos do SUS, no curto espaço de 30 anos implementamos o maior programa gratuito de vacinações, de transplantes de órgãos e de tratamento da infecção pelo HIV, do mundo inteiro. Nosso programa de saúde da família, que cobre a maior parte do país, é considerado pelos organismos internacionais um dos dez mais importantes da saúde pública mundial. As transfusões de sangue se tornaram seguras, o Resgate socorre pessoas no Brasil inteiro.
Essas conquistas convivem com o subfinanciamento crônico, as filas nos prontos-socorros e nos ambulatórios, a demora para marcar exames e conseguir internações hospitalares e as dificuldades de acesso a cuidados médicos de qualidade.
Ao lado dessas transformações, vimos nascer, junto com a instalação da indústria automobilística no ABC, os primeiros planos de saúde, que se popularizaram a partir dos anos 1990. Hoje, a saúde suplementar oferece assistência médica a 50 milhões de brasileiros.
Os recursos disponíveis à saúde suplementar e ao SUS expõem a desigualdade brasileira: mais de R$ 137 bilhões para cuidar de 50 milhões de beneficiários dos planos de saúde, contra cerca de R$ 240 bilhões destinados aos 150 milhões dos que dependem exclusivamente do SUS.
Nesse novo panorama, pouquíssimos conseguiram exercer a profissão liberal para a qual fomos preparados. Passamos a ser funcionários públicos ou prestadores de serviços em empresas, convênios e planos de saúde ou funcionários de hospitais e grupos empresariais de assistência médica.
A lógica de mercado invadiu o sistema de saúde. Administradores alheios à profissão trouxeram palavras de ordem às quais não estávamos habituados: produtividade, racionalização da mão de obra, economia de escala, lucratividade, fusões, corporações, capital de risco.
A nova ordem permitiu a construção de grandes hospitais, conglomerados de laboratórios de análises, equipamentos modernos e operadoras de saúde com milhões de associados. Assim, milhões de pessoas doentes puderam fazer exames complexos e receber tratamentos inacessíveis no passado. A oncologia moderna e outras áreas da medicina não existiriam no Brasil, não fosse a saúde suplementar.
O preço pago foi alto, no entanto. Reduzido à condição de número, o paciente deixou de ser o centro da atenção e a razão de existir do sistema.
Premidos pelas novas circunstâncias, muitos médicos se afastaram dos doentes. A queixa de que “o médico não me examinou, nem olhou na minha cara”, se tornou frequente. A má fama e o desinteresse dos colegas frustrados com os salários e as condições de trabalho fizeram perder parte do prestígio que tínhamos na sociedade, quando disputávamos com os bombeiros a primazia da profissão mais respeitada.
É pena, porque muitos se esquecem do grande número de médicos dedicados que, a despeito da remuneração e da falta de recursos materiais para o trabalho, mantêm o atendimento à população de baixa renda espalhada pelo interior ou aglomerada na pobreza da periferia de nossas cidades. Muitos de meus colegas estão entre as pessoas mais generosas que conheci.
Quando penso nessas contradições e nos desafios sociais que nós enfrentamos nos últimos 50 anos vem a certeza de que fomos muito privilegiados. De um lado, cada um a sua maneira, ajudamos a levar a assistência médica ao país inteiro. O SUS é um projeto em construção a ser aprimorado pelos que hoje estudam no grande número de faculdades espalhadas sem critério reconhecível pelo país afora. Estudando em escolas medíocres, estarão à altura desse desafio?
De outro, em nossos anos de atuação profissional testemunhamos um salto de qualidade técnica da medicina, que não encontra paralelo na história da humanidade. Quando nos formamos dispúnhamos de análises laboratoriais, eletrocardiogramas e mais alguns exames. As imagens se achavam restritas aos raios-X, simples ou contrastados.
Nestes 50 anos, vimos surgir as imagens dos órgãos internos, reveladas com nitidez pelos ultrassons, tomografias computadorizadas, ressonâncias magnéticas, cintilografias, PET-scans, endoscopias.
Quando nos formamos, a cirurgia era a especialidade mais prestigiada. Ao terminar o segundo ano de residência no Hospital das Clínicas os colegas disputavam para saber quem havia feito mais gastrectomias, colecistectomias, operado mais hérnias e abdomens perfurados por facas e armas de fogo.
Nos anos seguintes, o papel da cirurgia clássica ficou mais acanhado. Medicamentos novos, capazes de curar úlceras duodenais, fizeram cair o número de gastrectomias. Os avanços da radiologia praticamente acabaram com as chamadas laparotomias exploradoras. Cirurgias minimamente invasivas realizadas por via endoscópica se tornaram rotineiras. A robótica entrou na prática, criando a possibilidade de operar pacientes a distância.
Em 1967, os grandes problemas nacionais eram as doenças infectoparasitárias que, embora ainda persistam, são menos prevalentes do que as enfermidades degenerativocrônicas. A faixa etária da população que mais cresce é a que está acima dos 60 anos. Hoje, somos 19 milhões, em 2050 seremos 40 milhões.
O envelhecimento populacional dos últimos 30 anos levou 60 anos para acontecer na Europa desenvolvida. Os brasileiros envelhecem, e envelhecem mal: temos pelo menos 14 milhões de pessoas com diabetes. Metade das mulheres e homens chega aos 60 anos com hipertensão arterial. Doenças cardiovasculares e câncer disputam o título de principal causa de morte. A obesidade virou epidemia: 52% dos brasileiros estão acima do peso. Os quadros demenciais estão presentes em grande número de famílias.
Em 1967, contávamos com meia dúzia de medicamentos para controlar a pressão arterial e as taxas de glicose no sangue. Hoje, existem tantos que há necessidade de especialistas para lidar com eles. Quem sofria um infarto naquela época dependia da ajuda divina para continuar vivo. Cateterismos, stents, pontes de safena e UTIs aliviaram o trabalho do Criador na recuperação desses pacientes.
Pouco havia a ser feito nos casos com câncer que não se curavam com cirurgia ou radioterapia. Nossa geração assistiu ao aparecimento da quimioterapia e, agora, vê nascer as terapias-alvo e a imunoterapia moderna, primeiros passos de uma mudança de paradigma na oncologia do século 21.
Vimos emergir a epidemia de Aids, em 1981. Três anos mais tarde, a ciência já tinha isolado o vírus e desenvolvido um teste para identificar os infectados. Em 1985 surgia o AZT. Em 1995, os inibidores da protease, que criaram a possibilidade de controlar a doença. Nunca a humanidade lidou com uma epidemia com tamanha rapidez e eficiência.
Nos últimos 30 anos, os avanços da pesquisa pura e da biologia molecular produziram uma avalanche de informações sobre a natureza íntima do DNA, do RNA e das proteínas envolvidas em processos infecciosos, inflamatórios, degenerativos e neoplásicos. As consequências desses conhecimentos darão origem à medicina personalizada que levará em conta a biodiversidade humana, aos transplantes de células-tronco e de genes que corrigirão defeitos genéticos ou adquiridos.
O domínio das informações que brotam incessantemente das bancadas dos laboratórios e dos estudos clínicos internacionais com milhares de participantes está além da capacidade humana para digeri-las. Sem a ajuda da informática e de supercomputadores que aprendem com a experiência -como os que conceberam o Watson, da IBM-, não haverá como reconhecer-lhes a prioridade e incorporá-las à prática. O médico que toma decisões não amparadas em evidências científicas sólidas será uma figura tão ultrapassada quanto a dos que aplicavam ventosas e propunham sangrias.
Os próximos desafios serão os de levar os benefícios dessa medicina altamente tecnológica ao restante da população. Tarefa para gerações, porque exigirá a reinvenção de um SUS que ainda nem conseguimos implantar com a abrangência necessária.
Os custos dessa nova medicina serão tão altos que talvez venhamos a nos convencer, finalmente, de que o investimento preferencial deve ser na prevenção. Impedir que as pessoas fiquem doentes evita sofrimento e sai bem mais em conta.
Pela primeira vez na história de nossa espécie pudemos oferecer alimentos de qualidade a grandes massas populacionais e tornamos possível ganhar a subsistência no conforto das cadeiras. Obesidade e sedentarismo são os grandes males das sociedades modernas.
Preocupados com as lagoas de coceira da esquistossomose, as casinhas de pau a pique da doença de Chagas e com a falta de saneamento básico causadora de tantas enfermidades, qual de nós imaginou que um dia a principal mensagem de saúde pública seria: “Não dá para passar o dia inteiro sentado, comendo tudo o que te oferecem.”
Os médicos que nos precederam transmitiam mensagens de saúde ao encontrar as pessoas nas ruas, nas praças, nas festas da comunidade. As praças de hoje são as estações de rádio, os canais de televisão, o Facebook, o Google, o YouTube e os sites da internet. A tela do celular é o meio mais rápido de transmissão de informações médicas.
Graças a esses meios de comunicação, o paciente de hoje é muito mais informado do que há 50 anos. Muitos dos que nos introduziram na profissão eram médicos autoritários, que impunham suas condutas sem levar em conta as idiossincrasias individuais. A função do médico moderno é a de apresentar as possibilidades técnicas, para ajudar a pessoa doente a decidir qual delas se adapta melhor às suas necessidades e desejos particulares.
Quantos desafios cada um de nós experimentou. Quantas dificuldades, exigências e sacrifícios pessoais e familiares o exercício profissional nos impôs nessas cinco décadas. Amigos e contemporâneos nossos que escolheram outras profissões podem ter levado vida mais tranquila, menos sacrificada, e ganhado mais dinheiro com menos esforço. Mas, duvido terem conhecido o prazer de ver alguém à beira da morte sobreviver graças aos nossos conhecimentos, dedicação e envolvimento pessoal desinteressado.
O arquiteto deve sentir prazer diante da casa construída, o advogado por defender o interesse do cliente, o publicitário pela campanha idealizada, o mecânico ao ver o motor consertado, o agricultor ao admirar o verde da plantação. Serão esses prazeres comparáveis ao que sentimos ao aliviar o sofrimento humano, a razão maior da existência de nossa profissão?
Queridos amigos, nessa apresentação procurei deixar claro que jamais me arrependi da escolha que fiz ao prestar o exame vestibular para a nossa faculdade. Continuo encantado pela medicina, profissão caprichosa como a mulher amada, capaz de despertar crises inesperadas de paixão pela vida inteira.
Fonte: Folha de S. Paulo 18/11/2017 – Análise Caderno Cotidiano