por Carlos Bocuhy
A Organização Meteorológica Mundial, ligada à ONU, acaba de alertar para a continuidade do aumento da temperatura global, em que pese a influência do El Niño estar diminuindo.
“No final de maio, mais de 1,5 bilhão de pessoas — quase um quinto da população do planeta — suportaram pelo menos um dia em que o índice de calor superou 103 graus Fahrenheit, ou 39,4 graus Celsius, o limite que o Serviço Nacional de Meteorologia considera fatal”, informou o Washington Post.
Kristie Ebi, epidemiologista do Centro de Saúde e Meio Ambiente Global da Universidade de Washington, coletou dados dos eventos de calor extremo que atingiram a Nigéria, Tailândia, Vietnã, índia, Angola e Paquistão. “Quando uma onda de calor chega, a mortalidade começa a aumentar após cerca de 24 horas, já que as pessoas incapazes de se refrescar à noite começam a perecer”.
Segundo Kristie, metade de todas as mortes relacionadas ao calor são causadas por problemas cardiovasculares. “O coração realmente não gosta de esquentar”, disse.
No cenário global, os relatos são assustadores. Segundo artigo de Harry Stevens, para o Washington Post, em abril uma fábrica de munições explodiu devido ao calor extremo na Ásia matando os trabalhadores; no México macacos bugios caíram mortos de árvores em função do calor; e no Brasil os impactos climáticos da intensa e concentrada precipitação de chuvas sobre o Rio Grande do Sul impactou milhões de pessoas.
O conjunto desses eventos traz a constatação de que a tragédia climática, prevista pelos cientistas, não está mais no futuro, já chegou. Também sinaliza que não estamos preparados para enfrentar essa realidade e vamos ter que conviver, em nossas vidas, neste plano incerto para o qual não existe referencial histórico, mergulhados no que está se definindo como uma era de incerteza radical.
Essa constatação traz forte potencial de desestabilização emocional, mesmo para os que são iniciados na compreensão do problema climático. Durante uma conferência em Cingapura, a climatologista mexicana Ruth Cerezo-Mota ouviu explicações de colegas especialistas sobre a conexão entre o aumento da temperatura global e os impactos climáticos como ondas de calor, incêndios, tempestades e inundações. “A previsão não era para o final do século, mas para hoje”, afirma Cerezo-Mota, que entrou em depressão. Segundo ela, “é quase impossível não se sentir desesperada e quebrada”.
Não é para menos. A expectativa atual da pesquisadora é que o mundo atinja 3ºC até o final do século. Cerezo-Mota vai além: “Acho que 3ºC é cenário esperançoso e conservador; 1,5ºC já é ruim, mas acho que não tem como a gente se ater a isso. Não há nenhum sinal claro de nenhum governo de que realmente vamos ficar abaixo de 1,5ºC.”
A desesperança de Cerezo-Mota é compartilhada por centenas de especialistas do Painel Intergovernamental das Mudanças Climáticas da ONU (IPCC), que foram entrevistados pelo jornal britânico The Guardian. A grande maioria acredita que a temperatura chegará em + 2,5ºC ou + 3ºC e apenas 6% acreditam que a meta de 1,5ºC do Acordo de Paris será cumprida.
Uma das questões que tem abalado os cientistas é a incapacidade dos governos de ouvir a ciência apesar das evidências fornecidas, o que os deixa, segundo relatos da pesquisa do The Guardian, “desesperados, furiosos e assustados”.
O insucesso e suas causas ficam cada vez mais claros. 75% dos especialistas citam falta de vontade política e 60% culparam interesses econômicos como os da indústria de combustíveis fósseis. “A resposta do mundo até agora é condenável – vivemos em uma era de tolos,” disse um cientista sul-africano, que preferiu não ser identificado.
“Entendemos que relatos como esse podem levar a um sentimento de desespero. No entanto, como alguns cientistas apontaram, a esperança está em garantir que nos mantenhamos bem-informados, assim como as próximas gerações, para que possamos pressionar aqueles que estão no poder a tomar decisões que beneficiarão nosso planeta”, esclarece a posição editorial do The Guardian.
A população global começa a sofrer de perda de qualidade de vida com a percepção desta nova era de instabilidade. O termo ecoansiedade há anos está nos consultórios e em pauta na Sociedade Americana de Psiquiatria.
Em matéria sobre clima e saúde mental, a revista Nature já apontava, em 2021, que, “em pesquisa com 10.000 pessoas de 16 a 25 anos em 10 países, quase 60% dos entrevistados estavam altamente preocupados com as mudanças climáticas, e mais de 45% disseram que seus sentimentos sobre as mudanças climáticas afetaram suas vidas diárias, como sua capacidade de trabalhar ou dormir”.
Levar uma geração inteira à percepção dos riscos que corre realmente poderia fazer uma grande diferença como elemento de controle social sobre tomadores de decisão. Nesse sentido, não resta a menor sombra de dúvida de que a humanidade deveria deixar os relatos de frio consenso do IPCC para mergulhar nas vivências e perspectivas dos cientistas que o compõem, esses humanos estudiosos que têm lidado, mais amiúde, com o dia a dia das cúpulas climáticas – e têm sido os grandes responsáveis por fornecer subsídios técnicos para o estabelecimento das metas climáticas.
Matthew Huber, especialista em paleoclimatologia da Purdue University, após a onda de calor extremo de 2023, afirmou: “Enfrentamos isso como cientistas há décadas, mas agora o mundo está passando pelo mesmo processo, que é como os cinco estágios do luto”, disse ele. “É doloroso ver as pessoas passarem por isso”.
A ONU deveria urgentemente acatar as propostas levantadas por pesquisadores da Organização Mundial da Saúde (OMS) para que o Acordo de Paris abra um novo capítulo visando prevenir e atender os impactos psicológicos que as mudanças climáticas estão exercendo sobre a população.
Um dos principais aspectos para a construção de uma política de saúde mental, específica para a adaptação climática, implicará tornar o problema visível. Considerando que a doença mental já é subdiagnosticada e estigmatizada, e que os cuidados de saúde mental na maioria dos países são insuficientes, os impactos crescentes das alterações climáticas tornam ainda mais urgente a resolução dessa crise já instalada.
Um dos aspectos mais interessantes deste processo é a constatação de que a inação dos líderes mundiais é causa de angústia – e a ação dos governos é o que é necessário para acalmá-la.
Os que não tomarem as medidas necessárias tenderão a ser alvo de processos judiciais. Recentemente, por maioria de dezesseis votos contra um, a Comissão Europeia de Direitos Humanos (CEDH) concluiu que havia ocorrido violação do direito ao respeito pela vida privada e familiar. Condenou o Estado da Suíça, reconhecendo o artigo 8.º, que consagra o direito a uma proteção efetiva, por parte das autoridades estatais, contra os graves efeitos adversos das alterações climáticas na vida, na saúde, no bem-estar e na qualidade de vida.
Situações similares estão em curso em todo o planeta. Segundo o Relatório Global de Litígios Climáticos, até o final de 2022 foram registrados 2.180 casos em tribunais internacionais e judiciais. “Crianças e jovens, grupos de mulheres, comunidades locais e povos indígenas, entre outros, estão assumindo um papel proeminente na divulgação desses casos e impulsionando a reforma da governança das mudanças climáticas em cada vez mais países ao redor do mundo”, afirma o relatório.
De outro lado, a ONU tem feito fortes apelos para o estabelecimento de sistemas de Alerta Precoce, estimulando os países-membros a adotarem metodologia alerta-resposta até 2027. Essa iniciativa possibilitaria instruir a sociedade sobre os riscos que está correndo e capacitá-la para adotar respostas eficientes.
Mas ainda seguimos no contexto da velha política fóssil e do business as usual. Alertas são insuficientes, não considerados, sem contar com capacidade social de resposta; continuamos enfrentando políticos ineptos para lidar com o problema, imensos conflitos de interesses, cabendo ao povo, quando consegue, buscar seus direitos na judicialização para responsabilização e reparação de danos.
O processo demonstra que a profunda desconexão que o planeta enfrenta é a mesma desconexão da sociedade, com evidente falta de meios para superar a crise gerada pela própria espécie humana.
Os prognósticos deste momento atual têm raízes em alertas feitos há quase 40 anos por James Hansen (Nasa), que em 1988 testemunhou ao Congresso dos Estados Unidos, seguido por Mikhail Gorbachev, perante a Assembleia Geral da ONU e, finalmente, com a ficção da vida real da Verdade Inconveniente de Al Gore, em 2006.
Será preciso um esforço gigantesco para promover uma transição civilizatória, para longe dos combustíveis fósseis e do modo de vida insustentável. Sobretudo, será preciso uma população consciente sobre riscos climáticos, que exija a tomada de ações eficazes – e de homens públicos com coragem para realizá-las.
Fonte: Carta Capital
Foto: A tragédia climática prevista pelos cientistas não está mais no futuro. Já chegou (Foto: AFP)