Mortes e hospitalizações causadas pela Covid-19 na Europa estão muito abaixo dos picos registrados nos piores momentos da pandemia, embora os casos continuem a subir. O resultado é um descolamento agudo entre as curvas de doentes e de óbitos.
Consolida-se ainda um padrão: dentro de cada país, a maior parte dos óbitos hoje se concentra em regiões inicialmente poupadas. Nos locais que sofreram mais no começo, as mortes agora estão abaixo da média geral.
Portugal é o único país onde o aumento de hospitalizações e mortes é mais significativo. Mas Portugal foi também mais poupado no início por medidas restritivas à circulação de pessoas, quando chegou a ser apontado como exemplo a seguir.
Enquanto em seu pico a Covid chegou a matar 22 portugueses por milhão de habitantes, na Espanha os mortos somavam 120 por milhão; na Itália, 91; na França, 53.
A dinâmica portuguesa agora —assim como a evolução regional da doença dentro dos países europeus— mostra que, onde o coronavírus fez mais vítimas no início, ele é mais brando hoje. Onde matou menos, parece haver espaço para avançar mais.
O fato reforça a importância e a centralidade da imunização coletiva —a chamada imunidade de rebanho— na contenção da doença.
No Brasil, onde a epidemia chegou depois, a tendência europeia sugere o que vem pela frente. Pode ainda apontar como tratar a reabertura da economia e o isolamento nas áreas até agora mais ou menos afetadas.
Por causa da atual massificação de testes, muitos países têm hoje mais casos de infecções registrados do que no pico da pandemia, ou estão próximos dele, o que tem alarmado as autoridades.
A OMS (Organização Mundial da Saúde) chegou a afirmar nesta quinta (15) que as mortes na Europa podem superar em cinco vezes as registradas no pico.
Por ora, a projeção parece infundada. Não só pelo número atual de óbitos, bem menor, como pela aceleração das curvas de hospitalizações e mortes, menos acentuada.
Na França, os casos positivos para Covid hoje representam mais que o dobro (213%) dos registrados no pico, refletindo a massificação de testes.
Mas as hospitalizações (incluindo admissões em UTIs) equivalem a 26% do total no pico. Os óbitos, a 13%, segundo dados do Instituto Estáter, que organiza informações sobre a evolução da Covid-19 por países e suas regiões com base em números oficiais.
A partir deste sábado (17), a França adotará toque de recolher por quatro semanas, de 21h às 6h, em Ile-de-France, onde fica Paris, e oito pontos (Lille, Grenoble, Lyon, Aix-Marseille, Montpellier, Rouen, Toulouse e Saint-Etienne).
Várias regiões da França ainda podem registrar alta importante de hospitalizações e mortes, já que o país conseguiu conter de forma significativa o número de ocorrências de maio a julho.
Nas áreas francesas menos afetadas no início, os óbitos equivalem hoje a 24% do pico; nas mais castigadas antes, 10% —ante os 13% da média geral.
A situação é semelhante na Espanha, embora o país tenha contido as ocorrências apenas de maio a junho. Enquanto as mortes totais hoje são 13% do pico, as regiões menos atingidas no começo têm uma taxa de 22%; as que mais sofreram lá atrás, de 11%. Os novos casos representam hoje 82% do pico; e as internações, 15%.
As autoridades sanitárias espanholas indicaram recentemente as comunidades autônomas de Aragón, Castilla e León, Madri e La Rioja, além de Ceuta, em nível de “risco máximo”, mas delegaram às autoridades locais qualquer decisão sobre confinamento.
Outros países estão em situação mais confortável, mesmo com o atual número de casos positivos se aproximando ou superando os do pico.
Na Itália e na Alemanha, as mortes por Covid não passam de 5% do total no pior momento, e as hospitalizações seguem abaixo de 20%.
Enquanto a Itália debate a necessidade de novas quarentenas, a Alemanha instituiu o fechamento de bares e restaurantes às 23h e limitou as festas familiares.
No Reino Unido, hoje com muito mais infecções (295%) que as registradas no pico, as mortes por Covid representam 6% do pior momento; as hospitalizações, 24%.
“É natural que governos tenham postura conservadora, mas os dados de hospitalizações da maioria dos países europeus até o momento não parecem demandar as medidas restritivas impostas”, afirma Pércio de Souza, presidente do Instituto Estáter.
Em sua opinião, a falta de testagem no início do ano em muitos países compromete as conclusões a respeito da evolução da pandemia, diferentemente do que mostram as hospitalizações e os óbitos.
“Medida por hospitalizações, a curva pandêmica europeia tem intensidade ainda muito abaixo do ápice de abril, com cerca de 1/4 do pico, enquanto óbitos estão ao redor de 1/6 do pico”, diz Souza.
Segundo o médico português Rui Moreno, ex-presidente e membro honorário da Sociedade Europeia de Medicina Intensiva, apesar do recente aumento das mortes e hospitalizações na Europa, é possível ser “razoavelmente otimista” com a evolução futura da pandemia na região.
“O aumento dos casos reflete uma quantidade muito maior de testes. As novas infecções incluem muitos jovens, que adoecem menos. E houve uma melhora muito grande no conhecimento clínico para tratar os doentes, que têm sido atendidos prontamente nos hospitais”, afirma.
Poupado no início, Portugal tem hoje quadro mais difícil. Com um número de testes mais de quatro vezes superior aos que eram realizados em março e abril, os casos positivos no país equivalem a 151% dos registrados no pico, segundo dados do Estáter.
Já as admissões em hospitais representam 73% do pior momento; e os óbitos, 34%.
As internações em UTIs no país, que somavam 80 há dois dias, agora pairam em 130. Os casos novos casos registrados, de 700 diários há três dias, subiram para a faixa de 2.100 —mais que os 1.700 por dia computados durante o pico anterior.
Assim como outros países europeus, Portugal vem tentando adotar medidas preventivas para evitar um novo fechamento da economia e o colapso da atividade turística.
Moreno afirma que o mais provável é que a Europa ainda tenha de conviver com esse novo aumento de casos, hospitalizações e mortes pelas próximas duas semanas; mas a tendência pode ser de estabilização ou queda à frente.
Segundo ele, entre os países e cidades europeias, a situação de Madri é a mais complexa. “Parece haver uma enorme confusão ali, numa exceção que ninguém compreende ao certo o que ocorre. Paris, por exemplo, tem agora menos mortalidade do que antes.”
Fonte: Jornal Folha de São Paulo/ Uol