O SALÁRIO INVISÍVEL DO VOLUNTARIADO

Em 1972, eu fui preso político no DOI-CODI. Não vou detalhar aqui o sofrimento que eu e muitos outros passamos lá. Saí 60 dias depois com deficiência auditiva parcial por choques elétricos aplicados em meus ouvidos durante as sessões de tortura.

Foi nessa ocasião que conheci um metalúrgico, da oposição sindical, que estava preso e que também havia sido barbaramente torturado. Chamava-se João Chile e era bastante comunicativo. Um dia ele fez um desafio a nós três estudantes da Escola Paulista de Medicina que estávamos lá com ele. Nos desafiou para que, quando formados, fossemos atender a população do seu bairro, o Cangaíba, na zona lesta de São Paulo.

Desafio feito, desafio aceito. Paulo Horta, Walter Nascimento e eu fomos soltos daquele inferno e voltamos para a EPM, onde ficamos até dezembro de 1975, quando nos formamos.

Em janeiro de 1976, fomos em 14 médicos e alguns estudantes bater na porta do João Chile, no Cangaíba. E eu disse brincando: “A burguesia chegou! Cadê o povo para ser atendido”? Foi uma comoção. Refeito do susto e depois de almoçarmos, João Chile nos levou à casa paroquial, onde acertamos com os 3 padres franceses (João, Claudio e Rogério) nosso atendimento voluntário no Ambulatório Médico nos fundos da igreja, que estava novo e fechado. E, então, começamos imediatamente o trabalho voluntário.

Neste ano, faz 48 anos que vamos todo sábado, ininterruptamente, ao voluntariado médico do Cangaíba. Dos 14 médicos, ficamos eu, o Nacime e o Francé e, depois, agregamos a Dra. Genova e o Dr. Rogério. É claro que treinamos voluntários leigos da comunidade. Foram muitos e alguns estão lá conosco até hoje.

Ali, naqueles consultórios simples na periferia, nós atendemos cerca de 160 mil pessoas e eu operei (pequenas cirurgias) cerca de 3 mil pessoas. Fizemos daquele atendimento um mote de vida desde 1976, que se transformou num imenso programa de mobilização, organização popular e educação em saúde. Foram muitas as lutas por melhores condições de saúde e de vida no bairro, na zona leste e na Cidade. E assim é até hoje.

Criamos, logo a seguir, a Associação Popular de Saúde (APS), que institucionalizou e ampliou nosso trabalho, possibilitando muitas conquistas concretas. Mas, o que temos de mais nobre nessa história, são os laços de afetividade e respeito construídos com a população. Cada pessoa que nos procura ali é acolhida em sua necessidade. A relação médico/paciente é muito boa no consultório e transcende suas paredes, chegando à família e à comunidade.

O Bispo da região nos chamou de “os médicos beneméritos do Cangaíba” e o povo nos dedica uma afeição que não consigo descrever. E nós retribuímos.

Dessa forma, posso garantir que, embora nunca tenhamos recebido 1 centavo nesses quase 50 anos, existe um salário invisível que alimenta nossa vontade, nossa dedicação e nossa felicidade.

João Chile já faleceu. Muitos outros parceiros de lá também se foram. Mas posso garantir, com toda certeza, que tem valido muito a pena. Lá, cunhamos uma frase que estampa a capa do livro de Judith Patarra, retratando esta história: “Viver é gostar de gente”.

Gilberto Natalini- Médico e Ambientalista

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