Prefeitura de SP suspende concessão do Vale do Anhangabaú após TCM apontar falta de transparência no processo

A Prefeitura de São Paulo suspendeu a licitação para concessão do Vale do Anhangabaú. A medida foi publicada no Diário Oficial desta quarta-feira (26), data em que a gestão municipal deveria anunciar a concessionária escolhida para gestão do espaço pelo período de 10 anos.

A decisão ocorre após o Tribunal de Contas do Município apontar problemas no processo. A proposta também é alvo do Ministério Público, que analisa uma representação feita pela sociedade civil sobre falta de transparência.

Histórico

Embora a reconstrução do cartão-postal da cidade tenha sido desejada desde pelo menos 2007, quando a gestão do ex-prefeito Gilberto Kassab (PSD) recebeu uma comitiva do arquiteto dinamarquês Jan Gehl para repensar o Centro da capital, as obras e o processo de concorrência para a concessão da área tiveram rápido andamento no último ano da gestão Bruno Covas (PSDB).

As obras começaram em julho de 2019, um ano depois, a prefeitura publicou o edital de licitação para concessão do Anhangabaú, ainda em obras e em meio à pandemia contra o coronavírus, e agendou a abertura dos envelopes com as propostas para o mês seguinte, nesta quarta-feira.

Enquanto a gestão Covas aposta especialmente no “benefício econômico” que a medida vai trazer ao Centro da capital, com mais eventos e maior circulação de pessoas, parte da sociedade questiona as diretrizes da proposta, construída nos últimos meses dentro do gabinete.

“A empresa topa fazer a gestão, mas ela precisa ter lucro. E como ela vai conseguir isso? Acredito que com uma enorme rotatividade de pessoas – isso que a gente teme. Tem moradores aqui, tem o Theatro Municipal e o conservatório aqui, ondem fazem ensaios. Na Copa, funcionários de prédios comerciais no entorno enfrentavam dificuldade com acesso devido às interdições. A prefeitura deveria deixar explícito o desenho traçado para a geração de recursos da empresa”, explicou Arthur Monteiro, que integra o Conselho Participativo Municipal (CPM) da Sé.

Quais são os limites

O CPM da área central, questiona, sobretudo, como a empresa vai lucrar com o investimento no Largo do Anhangabaú e a que custo, pois a região também é habitada por moradores.

O organismo da sociedade civil, reconhecido pelo poder público como representante da sociedade, enviou um ofício à gestão Covas em 12 de junho, solicitando que o processo de licitação para concessão da área fosse temporariamente suspenso para esclarecimentos à comunidade, pois houve uma única audiência pública a esse respeito por videoconferência durante a quarentena, “restringindo o acesso da população, especialmente da mais vulnerável, que não possui acesso à internet”.

A prefeitura respondeu ao ofício em 3 de agosto argumentando que a consulta pública por videoconferência “foi divulgada em jornais de grande circulação e obteve participação expressiva, com a presença de 84 pessoas no aplicativo Zoom e 122 visualizações no Youtube”. A gestão acrescentou que a Procuradoria Geral do Município acompanhou o processo e ratificou que tudo ocorreu em “cumprimento de todas as formalidades”.

Para o advogado Rafael Vitorino, coordenador do CPM da Sé, a resposta da prefeitura não esclareceu as dúvidas da sociedade. “O que a prefeitura deixa claro é que a audiência cumpriu o requisito jurídico do diálogo antes do procedimento. A questão é que não enxergamos a audiência pública como uma formalidade, mas como algo realmente necessário para que os diferentes coletivos da sociedade conheçam o processo, possam questionar a destinação do local e tenham seus interesses contemplados”, disse Vitorino ao G1.

“É importante deixar claro que não temos nada contra concessões, especialmente em locais que precisam de revitalização. Em Berlim há bares e cafés embaixo de viadutos, no Hyde Park, em Londres, também funciona, mas é preciso transparência sobre essa exploração. A concessionária não atuou na reforma do vale e já vai levar a área de mão beijada, como um cheque em branco? Seria importante aprofundar a discussão para não gerar desconforto entre os habitantes da área e para que o interesse público seja preservado”, completou.

O ofício do Conselho Participativo Municipal da Sé está em análise na promotoria do patrimônio público do Ministério Público.

Concessão de áreas públicas abertas

O arquiteto e urbanista Eugênio Queiroga, livre-docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), explica que a transferência da gestão de um espaço livre público, ou seja, descoberto e de todos, para a iniciativa privada não é, em si, algo bom ou ruim – depende dos termos definidos para essa gestão, o que ela terá de fazer e o que será proibido.

“Evidentemente, o gestor privado assume esse encargo com o intuito de auferir lucros. Ele pode ganhar, por exemplo, sobre o direito de imagem e sobre os equipamentos de um show, pode ganhar com a implantação de quiosques, de uma floricultura… Isso com certeza é admissível, desde que não vire um shopping”, explicou o professor.

“Agora, essa lucratividade não pode impedir a fruição pública desonerada, gratuita, de um espaço livre público. Ao gestor não pode ser permitido cercear o ir e vir no Anhangabaú, que está no coração do centro da cidade, conectando diversas vias no entorno. As pessoas não apenas passam por cima dele, como por ele. Faz parte do cotidiano, da vida no centro”, continuou.

Questionado se a gestão deveria contar com a participação de um comitê com representantes da sociedade civil, o professor Eugênio Queiroga explica que não é preciso necessariamente, mas seria recomendável.

“Porque os diferentes grupos poderiam discutir o que é próprio, o que é recomendável para a área, o que pode acontecer em um horário e o que não pode. Existem prédios de moradias e escritórios próximos”, disse Queiroga. “Uma boa gestão é possível junto a um comitê representante da sociedade civil, com caráter deliberativo, e não apenas consultivo. O problema é que no presente, com o enfraquecimento da sociedade enquanto instância deliberativa, esses comitês podem virar apenas consultivos”, completou.

Falta diálogo

A crítica sobre a escassez de diálogo na concessão do Vale do Anhangabaú se estende, na verdade, sobre toda a obra e não se restringe ao momento da concessão da área, de acordo com diversos urbanistas e entidades do centro com quem o G1 conversou.

O empresário Carlos Beutel, militante pela recuperação do centro da cidade de São Paulo, se lembra de uma única audiência pública sobre o projeto de reconstrução do cartão-postal da capital.

“Em meados de 2015, ainda na gestão Haddad, mais de 3 mil pessoas se inscreveram para a audiência, mas cancelaram e o assunto morreu. Remarcaram para outra data, 14 de dezembro de 2015, no meio do recesso, fora do centro, onde compareceram 60 pessoas, sendo uma parte delas, integrantes da prefeitura. Isso não é audiência. Em seguida conseguimos mais duas na Câmara com o vereador Gilberto Natalini (PV)”, disse Beutel. “Não estou nem criticando o projeto em si e as propostas, mas faltou discussão”, continuou.

Nos últimos anos, Natalini enviou ao menos quatro ofícios solicitando à prefeitura mais discussões sobre o projeto de revitalização, mas não recebeu retorno.

“Em 2015 nos mobilizamos e conseguimos que o Haddad desistisse da ideia. Agora, quatro anos depois, o Covas tira da cartola o mesmo projeto, que foi submetido a poucas consultas públicas, rápidas, mal feitas e pouco abrangentes. A cidade não opinou. Foi tudo da cabeça da SP Urbanismo”, disse Natalini à reportagem. “Mandamos cartas, mas não quiseram saber, tocaram a obra, que inclusive está acabando. Quase R$ 100 milhões assim, usados na calada da pandemia. Um negócio doido. Isso não é forma de governar. É perdulário. É autoritário. É muito caro”, continuou.

No ano passado, logo no início das obras, a Associação Preserva São Paulo paralisou temporariamente o serviço, após uma representação no Ministério Público. “Impediram um debate democrático. A única audiência de que me lembro foi fajuta, onde chegaram com um projeto pronto, e as pessoas falaram e não foram ouvidas. Impuseram o projeto goela abaixo de forma autoritária”, disse Jorge Rubies, presidente da entidade.

Ana Wilheim, filha de Jorge Wilheim, um dos autores do antigo projeto, também se surpreendeu quando viu os tapumes cercando a obra que o pai dela fez mediante concurso público. “Meu pai não estava de acordo com a reconstrução da área, embora reconhecesse a necessidade de melhorias, e sequer foi formalmente convidado a opinar. Foi um profissional que, além do Anhangabaú, trabalhou em dois planos diretores. Se alguém aqui merecia respeito, acho que era ele”, afirmou.

O G1 também conversou com Prefeitura de São Paulo por meio de Luís Eduardo Brettas, que ajuda a coordenar o projeto desde o dia 1, e hoje compõe a SP Urbanismo. Ele nega que faltou diálogo e argumenta que as discussões inclusive se estenderam por anos.

“Teve muita discussão, sendo a primeira em 2007, na gestão Kassab, quando recebemos uma comitiva do Gehl para mediar oficinas sobre como requalificar o centro da cidade. Em 2013 retomamos o trabalho na gestão Haddad, trazendo novamente o Gehl para uma consultoria específica sobre o Anhangabaú. Esse trabalho levou à construção do projeto efetivamente, com participação de mais de 200 pessoas, entre professores, técnicos da prefeitura, representantes das pastas e organizações, todos hiper qualificados, ainda que sem o conceito de audiência pública”, defendeu Brettas.

“Quando a atual gestão assumiu, mostramos o projeto e ele topou sem interferência, reconhecendo as contribuições trazidas por outras gestões, e consciente de que voltar à estaca zero seria destrutivo”, disse ele.

Fonte: G1/ Foto tirada em julho de 2020 mostra Vale do Anhangabaú em obras de revitalização, no Centro de São Paulo — Foto: Rodrigo Rodrigues/G1

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